sexta-feira, 25 de junho de 2010

PARANÓIA E MECHAS

Os anos de minha juventude foram pesados. Vivíamos sob o tacão de ferro da ditadura militar que se instalara no país. Pensar diferente era um gesto suspeito. Ler era uma atitude de coragem. Costumava-se fazer a leitura do Manifesto comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels, e do ABC do comunismo, de Bukharin, de forma disfarçada. Além disso, não se via tais livros no comércio. Naqueles anos sessenta e setenta, as palavras “comunismo” e “socialismo” eram de causar espanto em grande parte da população brasileira desinformada.

Por outro lado, a sede de conhecimento dos jovens era insaciável. Preocupávamo-nos com as desigualdades sociais, os avanços da tecnologia e da medicina, o desemprego, a carestia, a inflação, a anistia aos presos políticos e, principalmente, com a falta de liberdade política. Esse era o clima no meio estudantil, com ênfase entre os universitários. As passeatas que cruzavam as ruas de Fortaleza, com participação de operários, estudantes e moradores de bairro em prol da democracia, eram comuns. Panfletar nas portas das fábricas, convocando os trabalhadores à greve, era um dever consciente dos que acreditavam na participação popular na luta pela democracia. Na ótica da repressão, foi justamente por esses motivos que fui preso. Ainda alegaram que o meu caminho haveria de me fazer um perigoso terrorista. O detalhe era que nosso grupo procurava realizar um trabalho de conscientização política junto ao povo no lugar da fracassada tática da luta armada.

Ao sair da prisão, era de se esperar que minhas desconfianças aflorassem rumo à paranóia. Aliás, minha geração foi descendo de roldão a escada da insegurança psicológica e emocional. A cisma passou a preencher o lugar do raciocínio lógico e começamos a ser os nossos próprios espantalhos. Por esse tempo, era comum meu avô dizer que “esse menino se assusta com a própria sombra”. E sempre aparecia um colega com a história de que estava sendo seguido por alguém ou que o telefone de sua casa apresentava ruídos estranhos. Certo professor, por exemplo, pediu-me para que tivesse paciência e não revidasse as provocações dos possíveis agentes policiais infiltrados em sala de aula, pois, somente assim, ficaríamos sabendo quem era de fato aquele elemento. Em outras palavras, era melhor ter um agente conhecido do que outro desconhecido.

Hoje me vejo até pensando em quantas meninas bonitas, colegas de faculdade, deixei de paquerar com medo de que a beldade fosse uma espiã a serviço da polícia política. E aí? Como deveria calcular uma possível ação indenizatória de perdas e danos afetivos e sexuais? Era comum darmos voltas aleatórias em quarteirões com o intuito de verificar se estávamos sendo perseguidos. Pegar um ônibus na cidade, com destino muitas vezes oposto ao que iríamos de fato, era também uma medida preventiva para desviar a atenção de quem estivesse em nosso encalce. Essa paranóia foi se transformando em verdadeira loucura, causando danos irreversíveis em muitos dos meus companheiros de lutas políticas.

Nessa época, eu participava de um curso sobre ciências políticas patrocinado pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB), localizado à Rua São Paulo, próximo à Praça dos Leões, centro de Fortaleza. Debatíamos os caminhos da redemocratização do país e, vez por outra, a conversa esquentava por conta das correntes políticas de esquerda, cada qual querendo impor seus pontos de vista ideológicos. Foi lá que conheci um estudante do curso de Filosofia. Ele devia ter mais ou menos a minha idade, era falante e inteligente. Defendíamos algumas posições um tanto divergentes e a nossa conversa se prolongava após o debate, em direção à Praça José de Alencar, onde pegávamos os respectivos ônibus para casa.

Tínhamos vinte e poucos anos e esse neófito colega trazia uma mecha branca em seus cabelos. Veja bem, eu tinha uma informação – não me pergunte como a obtive – de que certo policial da repressão usava uma sutil mecha branca nos cabelos como uma espécie de identificação secreta. Então, em uma dessas caminhadas para pegar o ônibus de volta para casa, esse jovem estudante me pediu emprestado o livro O papel do indivíduo na História, de George Plekhanov, que eu levava comigo. Fiz de desentendido e mudei de assunto. Outro dia, ele voltou a pedir o livro emprestado – ao que parece, eu não estava de bom humor e, nessas horas, ficava mais radical do que de costume -, e lhe respondi de imediato: “Se você deixar de pintar os cabelos, vai poder comprar esse livro, pois ele não é caro”. O arguto aprendiz de filosofia não soube o que dizer e mudou de cor, ou melhor, ficou igual à mecha. Então, seguimos rotas opostas por quase trinta e cinco anos.

O tempo voou. Em uma tarde ensolarada na Praça do Ferreira, dirigi-me com meu filho à conhecida lanchonete Leão do Sul, onde íamos saborear pastel com caldo de cana. Eis que adentra o recinto o meu velho colega do curso de ciências políticas. Por um instante, ele não me reconheceu. Não tive dúvida e, movido pela satisfação em revê-lo, exclamei seu nome e lhe cumprimentei. Ele recobrou a memória e, sem me responder, bradou em alto e bom som: “Agora, você está de cabelos brancos, hein! De cabelos brancos, hein! De cabelos brancos!” Evidente que meu filho e toda a freguesia do estabelecimento, que estava lotado, ficaram apavorados por um momento.

Na ocasião, não pude deixar de me lembrar de uma lenda que ouvi quando criança, em noites de lua cheia pelo sertão do Ceará. Contavam que a cobra, quando ia beber água, deixava o veneno em cima de uma folha. Se, por acaso, um menino derrubasse o veneno da folha, a cobra ficava de tocaia o tempo que fosse necessário. Então, quando aquele menino, já adulto, voltasse ao local, a cobra dava-lhe uma picada com o veneno mortal da vingança. Penso que, com exceção de uns poucos, minha geração foi picada pelo veneno da paranóia.

Ainda bem que meu rancoroso colega filósofo não percebeu que quem tinha os cabelos mechados, desta de preto e sem indícios de código secreto, era eu.

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