terça-feira, 24 de maio de 2011

MASCANDO CHICLETES

Aos sábados, a bodega de meu pai tinha seu movimento alterado. Os fregueses vinham de sítios e distritos próximos, em tropas de burro ou cavalo, para comprar mantimentos. Havia um parente e compadre de meu pai que era muito simpático e tratado por todos nós com distinção. Eu era um menino entusiasmado, quase um rapazinho, e sabia que esse compadre tinha duas filhas formosas, talvez da minha idade. Nos fins de semana, era comum eu ajudar a despachar os fregueses e, ao final da tarde, esperar por uns trocados. Em um desses dias, o parente falou a meu pai:

 Compadre, deixe esse menino passar uma semana das férias em minha fazenda.

Fiquei feliz com o convite. Meus pais aprovaram e, como faltavam poucos dias para o início das férias, mamãe arrumou minha sacola e me deu os velhos conselhos para não fazer estripulias. Já chegava julho e, uma vez que as chuvas haviam se estendido até o mês anterior, o ano era de fartura e o verde ainda dominava a paisagem. A fazenda do parente era bem tratada. Além da casa grande alpendrada, havia bastante gado, leite, queijo, feijão, milho maduro e um belo açude na baixa da manga.

Logo que cheguei ao lugar, percebi, nos olhares das filhas do parente, que eu era uma grata surpresa. Fiquei alojado em um quarto vizinho ao das meninas. À noite, com a luz do meu quarto apagado, pude olhar, por entre frestas da porta de madeira, a beleza das meninas ao se trocarem antes de dormir. Numa fantasia de adolescente, eu estava paquerando com as duas: uma olhava profundamente, enquanto a outra piscava e sorria. Teria, quem sabe, dormido no paraíso, não fosse a falta de uma delas em minha rede.

O dia clareou bonito de se andar a cavalo e tomar banho de açude. As duas meninas me fizeram companhia. Entre conversas alegres e frutas comidas na árvore, eu disfarçava o olhar em direção a seus corpos naquelas poses extravagantes de montaria. Elas subiam no cavalo de forma tão natural e elegante que era mesmo improvável não examinar cuidadosamente aqueles movimentos de perna e dorso femininos. Nós três estávamos muito perto um do outro e, em meio àquela dinâmica de sedução espontânea, não me sobrava tempo para definições. Era preciso saber esperar. Na volta, resolvemos cair no açude. E como elas nadavam bem! De vez em quando, num mergulho ou num gesto esparramado, tocávamo-nos os corpos como quem não quer nada.

A galinha caipira com pirão no almoço estava uma delícia. Depois de uma rápida palestra na presença dos pais, foi servido doce de leite como sobremesa. Todos foram tirar uma sesta, como é costume do povo do interior. Por volta das três ou quatro horas da tarde, eu, que cochilava no alpendre, fui acordado com o relinchado de um jumento encurralando uma fêmea ao lado da casa, pronto para fornicá-la. Convém lembrar que os pais das meninas haviam saído. Elas também foram despertadas com o barulho dos animais, uma a cada tempo. A mais nova logo ficou junto à janela que dava para a lateral do alpendre, onde se podia melhor ver o jumento tentando cobrir a jumenta. A outra estava por trás da coluna, em cima de uma cangalha. Uma não via a outra. Ambas não percebiam que, à espreita, eu estava lhes observando. As meninas prestavam muito atenção no procedimento rude e, ao mesmo tempo, carinhoso dos animais. Para meu espanto, seus rostos variavam do pálido ao vermelho, quando, de repente, elas começaram a mascar chicletes.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

QUE BELO!

Que bela a vitória do Ceará Sporting Clube no último oito de maio, ao consagrar-se campeão cearense de 2011! Pena que os torcedores alvinegros quase não puderam comemorar, pois faltou álcool nos postos de combustível e nos bares. Que bela a notícia de que o Padre Cícero está prestes a ser reabilitado junto à cúpula da Igreja Católica em Roma, podendo, mais cedo ou mais tarde, até ser oficializado como santo. Enquanto isso, a região do Cariri, terra do meu Padim, sofre com o grande número de mulheres assassinadas.

Que belo o fato de o número de empregos ter aumentado! Não obstante, ainda cresce o número de assaltos, roubos, sequestros, e não apenas na zona urbana: na rural é que a coisa está feia. Imagine se não houvesse o bolsa família e o ano não fosse de bom inverno! E é porque dizem que a polícia está vigilante e a classe média consumindo de mãos dadas com a inflação.

Que belo é o exercício da democracia neste país, ainda que representativa! Não fosse a carência ideológica dos nossos partidos políticos e a falta de ética na compra de votos, até que se podia imaginar os próximos passos do nosso resistente povo. Que bela a descoberta dos imensos lençóis de petróleo na costa marítima da região sul do Brasil, o denominado pré-sal! Doravante, poderemos sonhar com um futuro melhor para nossas crianças? É pena que já estejam inventando que na mesma região existe uma célula de organização terrorista relacionada à Al-Queada, ou seja, estão plantando a semente de uma invasão ao Brasil.

Que belo um pais com dimensões continentais, mar e tantos rios navegáveis! No entanto, optou-se pelas rodovias, o que há tempos tem se mostrado uma escolha equivocada, principalmente em termos ecológicos. Que belas também são nossas cidades, quase todas asfaltadas aparentemente com o único objetivo de fazer os automóveis atingirem altas velocidades – sim, porque basta uma chuvinha para ficarem alagadas e intransitáveis, sem contar o fato de que o asfalto mais parece uma casca de ovo.

Que belo o povo de uma cidade, com forte tradição inovadora, ter elegido um novo representante em contraponto ao velho coronel e sua maneira autoritária de fazer política! Infelizmente surgiu a famigerada mosca azul e o que era para ser vermelho ficou arrogante, temperamental e indiferente às reivindicações dos trabalhadores e seus movimentos sociais.

SHOW DO FAGNER

Assisti ao show do cantor e compositor cearense Raimundo Fagner no anfiteatro do Centro Cultural Dragão do Mar de Arte e Cultura, em Fortaleza, no dia 27 de abril. Esse show foi diferente e teve como novidade uma maior interação da platéia com o artista. Após blocos de três ou quatro canções, havia um intervalo, no qual um apresentador facultava a palavra ao público presente para que pudessem fazer suas perguntas ao cantor. Seu relato se deteve em variados temas, como a infância, a família e os entusiasmos inspiradores de algumas de suas famosas músicas, dentre outros.

O espetáculo, feito um rosário de histórias e canções, se dependesse dos fãs e do cantor, seguiria madrugada adentro até “pegar o sol com a mão”, conforme diz a letra da música de Luís Gonzaga e Zé Dantas – por sinal, sucesso também na gravação de Fagner. Acredito, pois, que era mesmo a idéia dos que elaboraram o show deixar o público mais perto do artista. A platéia que lotou o anfiteatro pareceu ter saído satisfeita.

Em meio a muitas intervenções, houve, se não estou enganado, um professor de Cajazeiras, Paraíba, que lembrou o primeiro show de Fagner em sua cidade. Segundo o professor, foi uma noite para não ser esquecida em Cajazeiras, e ainda garantiu emocionado que, se Paris é lembrada pela Torre Eiffel e Nova Iorque, pela Estátua da Liberdade, Fortaleza é lembrada pela voz autêntica de Fagner.

Houve também a participação do educador Tadeu, que perguntou ao compositor se fora ele ou seu parceiro Zeca Baleiro quem teve a idéia de fazer a canção sobre o falecido jogador maranhense José Ribamar de Oliveira, o Canhoteiro. Fagner respondeu que a idéia foi de Zeca Baleiro, conterrâneo de Canhoteiro, e logo passou a contar um causo sobre o lendário ponta esquerda que, no início da carreira, chegou a jogar pelo América local e pela seleção cearense, para, em seguida, ser contratado pelo São Paulo Futebol Clube, onde se consagrou como o Garrincha da ponta esquerda.

Pois bem, aproveito para tornar público o convite que faço ao excepcional cantor Fagner para compor uma música em homenagem àquele que foi um dos maiores jogadores de futebol cearense de todos os tempos: Mozart Araújo Gomes, o Mozarzinho. E, só para lembrar, Mozart fez dupla de ataque com Fagner no Beleza Futebol Clube. Afinal, espera-se que saia em breve a biografia “Mozart, a arte em jogar bola”, de autoria deste humilde escritor.

domingo, 1 de maio de 2011

ZÉ MARIA DO TOMÉ


Fui criado com pirão, leite e bastantes frutas vindas do sítio de minha avó. Aliás, fruta era coisa de menino, especialmente as colhidas e comidas na própria árvore. Essas, sem dúvida, são mais saborosas. O caju, a manga, a goiaba, a banana, a tangerina e o sapoti eram plantados nas margens do riacho, terras naturalmente férteis e, quando muito, misturavam-se ao esterco curtido de gado, por isso floresciam saudáveis e apetitosos.

Hoje as terras em que as sementes dessas e de ouras frutas são plantadas recebem uma carga enorme de produtos químicos, os chamados agrotóxicos. O objetivo da utilização desses produtos é combater as pragas agrícolas, facilitando a produção de frutas maiores, mais bonitas e “menos defeituosas”. É exigência do mercado seduzir os consumidores com grandes exemplares de bela aparência.

Acontece que o agrotóxico também é um veneno e, portanto, pode causar diversos males à saúde do ser humano, dos animais e do próprio solo. O Ceará é o estado que mais consome agrotóxico no nordeste e, no Brasil, fica em quarto lugar. Sabe-se que, num distrito de Limoeiro do Norte (194 km de Fortaleza) chamado São Tomé, uma considerável parte da população vem sofrendo de intoxicação aguda decorrente da pulverização aérea de agrotóxicos, apresentando irritação nos olhos, tontura, depressão, fraqueza óssea, sangramento, falhas da memória e câncer. Pesquisas realizadas pela Universidade Federal do Ceará apontam, inclusive, que a água da região está contaminada.

O agronegócio não esperava que, em meio à zona rural do baixo Jaguaribe, existisse um cidadão, desses forjados nas lides sindicais, que acreditava em uma sociedade compartilhada e justa. Ele lutava junto aos trabalhadores por melhores condições de vida e, dessa forma, contra o uso indiscriminado dos agrotóxicos. Foi, com sua sensibilidade e sua atenção, um dos primeiros que percebeu a coceira no corpo das crianças e a tosse seca dos jovens desde o início da pulverização das plantas na área.

Não tardou e vieram os laudos médicos comprovando que seus companheiros estavam com câncer e outras doenças. Zé Maria não era de desanimar e, ao contrário, arrebanhou mais gente em protestos com reuniões, passeatas e abaixo assinados junto às autoridades. Com atitudes ousadas e solidárias, tornou-se uma pedra no meio do caminho do agronegócio. Zé Maria foi assassinado em 21 de abril de 2010 e, desde então, perdi todo aquele prazer infantil de saborear as frutas.

VIDA DE GADO

Ah, Caro leitor! Se você é daqueles que nunca precisou ir a um terminal de ônibus, sem dúvida, é um sujeito de sorte. Pois na hora do rush, quando o trabalhador vai pegar o ônibus, é um “deus nos acuda” que você nem imagina. Primeiro, entra-se numa fila onde se é empurrado de um lado, puxado de outro e não se pode descuidar dos bolsos. As mulheres, então, passam por uma situação vexatória em que são apalpadas e agarradas pelos tarados de plantões. Se vacilar, a carteira é roubada em segundos.

O ambiente de qualquer terminal de ônibus é de uma aparente tranquilidade com a conivência dos que fazem vista grossa. Lá, por exemplo, vende-se de tudo. Há tapioca sem sabor, café frio, bolo gorduroso, suco aguado e churrasco de carne duvidosa. Há também cachaça, farofa e cassetete nos peitos de gente simples. Sabe-se ainda que o que rola por fora são outras drogas. Bom, o preço é baratinho, feito laço armado para segurar uma rês desgarrada.

Quem adentra um terminal com aquelas cercas de arame moderno, vê a multidão descontrolada num corre-corre de quem não pode se atrasar para o trabalho, escuta o barulho ensurdecedor do motor dos veículos, repara nos rostos suados daqueles que fazem uma jornada de doze horas de trabalho, percebe o choro involuntário de uma criança e tem a nítida impressão de que se encontra mesmo em um curral humano onde as pessoas são tangidas não por acaso.

Nesses dias de chuva, ao olhar para a cobertura dos terminais, vê-se um teto que mais parece uma peneira. O cidadão se arruma para ir ao trabalho, entra no terminal enxuto e sai molhado – isso se escapar de um pedaço de alumínio ou zinco que porventura despenque do alto e caia em sua cabaça.

Essa batalha diária não tem finalmente. Chega o momento em que o cidadão consegue botar o pé dentro do ônibus para tomar outro susto: uma placa, ao lado do cobrador, avisa que o limite de passageiros é de vinte e cincos sentados e trinta e oito em pé. Alguns assentos foram retirados e os que ficaram não possuem o menor conforto. Se não sofrer assalto e chegar com vida ao seu destino, o trabalhador suspira e diz: Ê vida de gado!