quarta-feira, 16 de março de 2011

POETA DO FUTEBOL

Admiro os fanáticos, não de qualquer tipo. Refiro-me aos que elegem seu objeto de estudo e passam a carregá-lo por quase toda a vida. Alguns cientistas, revolucionários, colecionadores, monges, pesquisadores são incansáveis e obcecados pela aprendizagem. Eles merecem muito respeito, pois deles emana o fascínio da solidão profícua e a práxis do pensamento multifacetado da dialética em luta contra a acomodação do establishment.

Sinto-me, pois, honrado de ter amigos fanáticos, não os eleitos por suposta divindade, mas, sim, os determinados. Desses, um domina o marxismo como poucos. Há também um economiário que, além de aguerrido militante petista, é sociólogo dos mais lúcidos. Tenho ainda outro amigo, apresentador de programa esportivo na TV, que é um profundo conhecedor da história do rádio cearense. São pessoas sérias e estudiosas, que têm bastante a nos ensinar. Mas hoje quero falar de um cidadão que completou oitenta e quatro anos em janeiro último e, desde a mais tenra idade, é um louco por futebol. Sua especialidade: a seleção brasileira.

Você, caro leitor, deve porventura pensar que o personagem dessa crônica, devido à idade avançada, é um sujeito hipocondríaco, mal humorado e complicado para sair de casa. Se pensou assim, enganou-se redondamente. Ele goza de boa saúde, faz chacota consigo mesmo, conta causos jocosos e está sempre disposto a cair na gandaia. Adora um forró, toma seus uisquezinhos de leve, é amarrado numa morena sestrosa e, vez por outra, arrisca-se a pegar o sol com a mão, como diz o poeta. Embora no outro dia, de ressaca, o viúvo peça perdão à falecida e jure não repetir o tal pecado.

Ele escreve livros, todos sobre a seleção brasileira de futebol, sua paixão irrefreável. O último, então, “O Brasil em todas as copas – 1930 a 2010” (2010), teve grande acolhida no meio desportista, sendo referência nacional de comentaristas de rádio, televisão e demais estudiosos do assunto da nossa canarinha. É evidente que ele aprecia o bom futebol, não importa de qual país, no entanto, em defesa do futebol brasileiro e seus craques, demonstra um rol de afiados e radicais argumentos.

Em razão do exercício da escrita, ele cultivou uma plêiade de amigos de fazer inveja a qualquer amante do futebol. Desde os anos cinquenta, é amigo do famoso lateral esquerdo do time da estrela solitária e da seleção brasileira, Nilton Santos, a enciclopédia do futebol. Imagine que o polêmico e inteligente João Saldanha, ex técnico da seleção Brasiléia, tinha o costume de lhe telefonar quando ainda era comentarista da rádio Globo. Para se ter uma idéia de seus bons relacionamentos, Zizinho, Didi e Zagalo, quando vinham a Fortaleza, mal desembarcavam no aeroporto e já perguntavam por ele.

Agora, veja o que aconteceu com esse meu amigo fanático por futebol: outro dia falávamos ao telefone, invariavelmente sobre a seleção brasileira e seu pífio resultado diante da seleção francesa, quando, de repente, ele pediu licença e mudou de assunto para narrar, segundo sua opinião, uma das cenas mais bonita do mundo – depois, é claro, das bicicletas de Mozart Gomes. A cena era a seguinte: um passarinho havia pousado na árvore do seu quintal e estava cantando. Era uma linda espécie de cores verde-cinza, amarela e marrom, possivelmente um sabiá. Quem sabe, não seria aquele o sabiá do Garrincha? Por sinal, seu amigo também.

A essa altura, tenho certeza de que o leitor sabe de quem estou falando. Trata-se de Aírton Fontenelle “do Brasil”, o poeta maior do futebol.

(Texto publicado no Jornal Diário do Nordeste, em 13/03/11)

O GATO ATRAVESSADOR

O gato do mato está em processo de extinção. É pouco provável encontrá-lo nas diminutas florestas do nordeste do pais. A maldade humana é tamanha que, além de praticamente dizimar o felino selvagem, ainda mal trata e abandona o gato doméstico, fazendo com que ele emigre para o mato.

No lugar do gato maracajá, surge outro tipo de gato bem mais astuto, violento e por vezes sinistro. É ele quem arrebanha jovens trabalhadores das regiões nordestinas para trabalhar no corte da cana-de-açúcar nas grandes fazendas do sudeste, muitas em São Paulo. Conhecido também como atravessador, ele costuma agir com apoio das grandes empresas rurais.

Esses jovens trabalhadores viajam já devendo o dinheiro da passagem, da bóia e da pensão, quase sempre de péssima qualidade. Nada do que foi combinado aqui será cumprido lá. Carteira do trabalho assinada, décimo terceiro, férias, fundo de garantia por tempo de serviço (FGTS) e salário acima do mínimo – tudo isso não passa de promessa. Pena que eles somente descobrirão essa farsa em pleno exercício laboral de mais de doze horas por dia.

A maioria desses trabalhadores não tem nenhuma qualificação profissional. São seduzidos pela promessa de trabalho digno e acabam tornando-se presas fáceis dos exploradores de mão-de-obra. Em vários casos, é necessário que haja denúncia para que os Auditores Fiscais do Trabalho, juntamente com membros do Ministério Público do Trabalho e apoio da Polícia Federal, possam desbaratar essa triste situação análoga ao trabalho escravo.

No início do século XXI, em pleno esplendor do desenvolvimento tecnológico, ainda se morre de fome nos mais diversos rincões do planeta. Ao mesmo tempo em que todos louvam a liberdade como a melhor forma de convivência e crescimento humanos, veicula-se nos meios de comunicação reportagens sobre o trabalho escravo, situação que envergonha todas as nações.

É interessante observar que o Conselho Nacional de Justiça está à procura de empresas que se disponham a qualificar e a contratar pessoas libertadas do trabalho escravo. Sem querer escamotear a luta de classe como motor da história, acredito ser essa idéia uma das mais criativas dos últimos tempos. Também é de bom alvitre taxar as grandes fortunas com o objetivo de amenizar as desigualdades sociais. Quem sabe, a troca de um gato por uma idéia social lúcida seja uma das soluções, ainda que reformista?

DE VOLTA AO MESTRE SÓCRATES

Tomava o meu café, antes de sair para trabalhar, e assistia ao jornal televisivo do dia quatro de março. Era veiculada uma matéria que explicava por que as mulheres prestam mais atenção do que os homens nas liquidações. E mais: garantia um estudioso do assunto ser a mulher vocacionada para realizar o pagamento a prazo, enquanto o homem era mais objetivo e preferia pagar à vista.

Estranho esse tipo de matéria no meio de um telejornal. A idéia é claramente induzir o telespectador ao consumo. Ora, após as despesas de final de ano, o momento é mais propício para o cidadão fazer um balanço em suas contas! Na verdade, esse apelo mercantilista não chega a ser nenhuma novidade, uma vez que, nas novelas e nos jornais, dá-se sempre um jeito de empurrar o incauto telespectador às compras.

Por falar em novela, é comum a mocinha, sem ver e nem pra quê, entrar em lojas de grife, puxar o cartão de crédito e efetuar muitas compras, deixando o público feminino com água na boca e, naturalmente, disseminando a discórdia no lar. Ah, mas o galã não fica por baixo! Também sem a menor convicção no roteiro da historia, ele toma um uísque, atende ao celular, entra em seu carrão importado ou pega um avião para Nova Iorque, antes, porém, a telinha evidencia as respectivas marcas.

O telespectador, no mínimo, deve se perguntar de onde surge tanto dinheiro nos bolsos de tais personagens. Esse fato me faz lembrar os antigos filmes de caubói, em que o protagonista, para se livrar das armadilhas dos bandidos, disparava infinitamente seu revólver cheio de bala, sem que soubéssemos de onde vinha tanta munição.

Antes de o jornal terminar, foi noticiado mais um crime bárbaro em família diante de uma criança. Um analista de plantão – se não estou enganado, um sociólogo – comentou que esses crimes ocorriam porque as pessoas estavam cada vez mais egoístas e consumistas. Talvez fosse o momento de refletir sobre as palavras do filósofo Sócrates, ao ser perguntado por um discípulo que o viu no centro comercial de Atenas: “Mestre, o que fazes aqui?” Ele, então, respondeu: “Observando a enorme quantidade de objetos dos quais não preciso para ser feliz.”

CARNAVAL – O QUE VALE É A IMAGEM

O carnaval é uma festa esplêndida, em constante transformação. Em sua essência, parece haver uma comunhão de alegria. Do inconsciente, jorra um mundo mágico de máscaras com personagens que gostaríamos de ser. O Brasil, então, torna-se o país dos sonhos. Dizem que seu carnaval é o maior porque exalta a paz.

Mas não custa nada fazer algumas observações. A invasão de atrizes e manequins como madrinhas de bateria das escolas de samba, por exemplo, soa um tanto sofisticada, artificial e fora de compasso. Nada contra a Luiza Brunet, a Gisele Bünchem ou a Cláudia Raia, pelo contrário, elas são lindas, sorriem até demais e exercitam razoavelmente o samba no pé. Entretanto, com todo o respeito à mistura de raças, quem é bamba sabe que ali está faltando ginga, ritmo e o verdadeiro requebrado de uma rainha do samba.

Não adianta a TV, através de seus locutores esportivos, querer meter na cabeça dos telespectadores que elas – as modelos e atrizes – estão arrasando na avenida e que o povão nas arquibancadas está indo ao delírio, quando as imagens são veiculadas e em nada correspondem ao que eles afirmam! Ou seja, o repórter fala que a modelo está com o samba no pé e a imagem mostra que ela é simplesmente esforçada e espalhafatosa.

Agora, ouvir uma dessas beldades, ao ser entrevistada após o desfile, dizer que “ama de paixão a escola de samba tal”, quando se sabe que ela desfilaria por várias outras, é dose! È como o jogador de futebol que faz um gol e corre para a torcida beijando a emblema do clube, embora todos presentes no estádio saibam que ele fez a mesma atitude quando jogava pelo time rival. O carnaval, assim como o futebol, converteu-se mesmo em espetáculo, ainda que venha com o invólucro da paixão.

Muitos pagam caro para sair no desfile de uma escola de samba. Como o carnaval é a apoteose da vaidade e uma grande festa para turista ver, aproveito para contar a historinha de um amigo que gastou uma grana para sair na Sapucaí. Ele viajou e pediu a todos os conhecidos que ficassem de olho na telinha. Gente, fizeram maldade com nosso folião! Deram-lhe uma fantasia que o tornou irreconhecível. Mas, folião que é folião não desiste nunca. Hoje ele sai no bloco dos sujos, aqui em Fortaleza, e é eterno candidato a vereador.